quarta-feira, 14 de maio de 2008

Eu sou, tu és, todos somos

Vivemos num mundo de relações instáveis, num mundo onde é vulgar encontrar relações que se afundam nas profundezas dum mar escuro e infestado de medos, afastando-se do ar fresco da amizade, da luz do amor, da paz...
E o grande problema, na minha opinião, é que somos seres doentes, e um ser doente não tem a capacidade de construir algo tão belo como teria se fosse saudável - neste caso uma relação com outro ser. Quando falo de doença, não me refiro a uma doença física, ou a uma doença mental, mas mais a uma doença espiritual. Claro que quando todas as pessoas são doentes da mesma forma, a doença passa a ser a sanidade, passa a ser a saúde. Tendemos a encarar os desvios como algo que precisa de ser corrigido, de forma a se assemelhar mais à média. E tendemos a encarar o vulgar como normal, e aceitá-lo. A nível físico atingimos um grau de relativo bem-estar (isto para não falar nas grandes disparidades que encontramos pelo mundo fora); a nível mental a nossa insanidade é considerada normal, porque somos todos insanos, e porque escondemos a nossa insanidade para fazer uma sociedade resultar, e vamos sobrevivendo como espécie... mas será que tem mesmo resultado? Olhemos à nossa volta...
Portanto, abandonando essa visão comum, de que o que é partilhado por todos é normal, vamos adoptar uma visão mais objectiva do que considero ser um problema.
Vivemos numa grande instabilidade interior, constantemente num grande tumulto, numa desintegração extrema. Só que para nos apercebermos destes nossos problemas exige-se uma profunda auto-obervação e autoconhecimento, mas o mais alheios possível à influência cultural. Se olharmos pelos olhos da sociedade vamos ver algo normal, porque é igual à maioria. Se olharmos de uma forma mais transcendente vamos ver algo que precisa de ser curado. Este algo passa facilmente despercebido, porque exigem um olhar profundo.
De que falo então...?
Falo de todas as barreiras psicológicas que deturpam o nosso espírito. De todas as formatações que impedem a exteriorização do nosso ser (vulgarmente chamadas de Superego). Essas limitações, que no fundo são auto-impostas (ou permitidas por um estado passivo e inconsciente) impedem-nos constantemente de mostrar aquilo que temos dentro de nós. Temos medo de fazer má figura perante os olhos dos outros, de ser considerados estranhos, de ser de certa forma 'rejeitados', no geral temos medo de qualquer reacção negativa por parte dos outros. E seguir aquilo que é a regra aproxima-nos da certeza de sermos considerados normais, afastando-nos no entanto dum estado interior consolidado. Temos medo do que nos possa acontecer no futuro, temos medo do que nós irá acontecer no futuro que nos vá causar dificuldades, temos medo do que nos aconteceu no passado (falo de todos os acontecimentos negativos que nos marcam e por vezes continuam a atormentar), temos medo de morrer... é um sem fim de facetas de um medo que ensombra a natureza do ser que temos dentro de nós.
É a este medo generalizado que eu chamo de doença. No entanto acredito que esta doença tem uma cura. Só que para o desespero (no melhor dos casos, porque isso significaria uma vontade de melhorar), conformismo ou negação daqueles que buscam a felicidade e auto-realização no exterior, este cura não pode ser conseguida através de nenhum especialista, de nenhum auxílio externo. Esta cura, que é uma auto-cura, só funciona se nos conhecermos, conhecendo assim aquilo que tem de ser enfrentado.
Tudo isto para chegar à seguinte conclusão:
Não podemos construir um castelo sobre areias movediças. Descontextualizado? Não. Não podemos construir nada sólido sobre algo que não seja sólido também. Não podemos partir numa jornada de compreensão dos outros, se não nos compreendermos a nós próprios. Não podemos partir numa aventura de amar alguém, se não nos amarmos a nós próprios. E aqui está a chave para o problema das relações: a falta dessa integridade interior, para que possamos partir para o desafio de uma relação com outra pessoa. Um ser instável interiormente, um ser doente, não consegue relacionar-se de forma pura com outro ser, consegue-o apenas duma forma superficial e egocêntrica. Antes de iniciarmos uma dessas aventuras de amizade ou amor, devemos preparar-nos para a longa viagem. E aqui não se trata de nos munirmos de provisões para o caminho, mas sim de de nos construírmos como seres unos, íntegros, sãos, o que depois se reflectirá na relação. É fundamental deixarmos de focar o exterior como causa dos nossos problemas, temos de focar mais aquilo que mais está ao alcance de ser trabalhado, e que neste caso é aquilo que mais precisa de ser trabalhado: o nosso ser interior.
Quando partimos para uma relação sem preparação (o que também é importante ao início, porque nos dá aprendizagem, nos permite mais tarde melhorar - embora muitos se recusem em aprender) os conflitos estão destinados a acontecer. Um ser doente junta-se a outro ser doente, e a doença multiplica-se. Dois seres tão pouco consolidados fazem com que uma relação desmorone tal qual castelo de cartas. Dois seres instáveis constroem relações de posse, de ciúme... no fundo relações abaladas constantemente por diversas facetas do medo.
Quando partimos para uma relação após o devido crescimento pessoal (atingiremos alguma vez um patamar 'suficiente'?), há a hipótese de se criar um espaço belo de troca sem agressividade, de liberdade. Pode cultivar-se um jardim onde muitas vezes floresce a amizade e o amor.
O mundo em que vivemos é feito de relações, e vale a pena mais uma vez enfatizar que a única forma de mudar o mundo é mundando-nos a nós próprios, porque o mundo não pode ser mudado directamente - o mundo é uma abstracção. O mundo é constituído por biliões de relações, e nós só nos podemos mudar a nós nessa relação constante. O mundo não pode ser mudado, e não devemos tentar mudar o próximo, porque não temos esse direito, e porque só o outro se pode mudar a si próprio. Podemos sim, abrir uma janela na sua mente e no seu espírito, uma janela para a mudança... e se esse próximo optar por colocar a cara de fora da janela e inspirar a doce fragrância do crescimento pessoal, pode ser que decida dirigir-se para a porta, transpô-la, e relacionar-se com o mundo.
E se compreendermos isto e mudarmos, já o mundo terá melhorado, já a relação com o outro terá mudado, e já o outro terá consequentemente mudado.