quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Waiting for you...

Será possível atingirmos a verdadeira felicidade sem ninguém com quem a partilhar? A conclusão final da viagem interior de Christopher Johnson Mccandless foi que a felicidade só é real quando partilhada ("happiness is only real when shared"). Será isto verdade? Se repararmos bem na nossa vida, é realmente verdade que em todas as situações em que algo acontece que nos incendeia a alma, o nosso primeiro impulso é partilhar com alguém de quem gostamos. E foi isso que Alexander Supertramp concluiu, no final da sua revolução interior: podemos fugir, podemos ser livres, podemos ser nós próprios, mas enquanto não partilharmos a essência da nossa felicidade e daquilo que somos com alguém, enquanto não amarmos, não seremos verdadeiramente realizados.
No meu ver, o amor é realmente o expoente máximo da viagem que é a vida. É a etapa mais alta, que na minha perspectiva quase ninguém atinge. Sim, as pessoas apaixonam-se. Sim as pessoas namoram, casam-se, partilham experiências. E sim, as pessoas também se habituam, e se conformam. Mas o amor não é nada disso.
O grande problema nesta questão do amor é a forma como é construído. Passo a explicar. A vida é como um mar, um oceano, imenso e profundo. As pessoas, por outro lado, são como ilhas, cada uma no seu espaço pessoal, no seu mundo pessoal, sem saber como comunicar com as outras ilhas. De vez em quando lá se constrói uma ponte que vai de uma ilha até outra mas, diga-se de passagem, nós humanos não somos grandes engenheiros em termos de relações pessoais. Irónico, não é? O ser social por excelência ser um péssimo exemplo do que significa ser um ser social!
O problema destas pontes entre as ilhas são vários. Um desses problemas é que as pontes são feitas com cordas e madeira, e muito frágeis. No meio de tanto papaguear dos nossos pensamentos, de tantas ideias pré-concebidas nas nossas mentes, do que é verdade e do que não é, do que está certo e do que está errado, e por aí adiante, não conseguimos comunicar. Não nos conseguimos ouvir uns aos outros. Quando falamos com alguém, mais do que ouvir, essa pessoa está já a formar o seu juízo do que somos, do que dizemos, e à espera da sua vez para falar. Com uma comunicação assim no geral, é normal que as nossas relações sejam muito frágeis. Isto aplica-se tanto às relações no geral como nas relações amorosas.
Mas parece-me que o maior de todos os problemas dos relacionamentos entre ilhas vai além da construção de pontes. Podemos construir pontes melhores. Podemos usar betão, podemos construir pontes sobre a água, podemos ir de barco, ou até de avião. Os nossos limites são os limites da nossa imaginação! No entanto, por melhores que sejam as pontes, se as começarmos a construir uma ponte em cima de areias movediças, ela vai afundar-se passado pouco tempo. O que quero dizer com isto é que o ponto de partida tem de ser sólido, estar bem estabelecido, antes de almejarmos algo mais longínquo, mais ambicioso. Conclusão:

Não podemos construir uma relação sólida a dois enquanto não construirmos uma relação sólida connosco!

Depois de termos essa relação connosco, aí sim, podemos construir uma ponte para as outras ilhas, construir verdadeiras amizades (e outras relações) e, se soubermos esperar, pode ser que o amor aconteça. O que estou a dizer é, portanto, que nós não temos boas relações connosco, e esse é um dos (dois, e o outro ficará para outra altura) grandes motivos pelos quais o amor não acontece. E o que é uma boa relação connosco? É uma relação em que nos respeitamos e aceitamos pelo que somos. 90% das pessoas responderia a isto com um simples "mas eu respeito-me e aceito-me como sou". É normal. Mas se olharmos lá bem no fundo, se formos em busca de nós próprios, se tentarmos compreender a forma como funcionamos, vemos que não é bem assim.
Apesar de eu não ter simpatizado muito logo à partida com a teoria de Freud, houve um conjunto de ideias que retive, especificamente em relação ao jogo de forças Id-Ego-Superego. Esse conjunto de ideias começou a ganhar mais sentido à medida que me conhecia mais profundamente, à medida que conhecia outras teorias, nas quais revia essa mesma ideia de que há várias forças a contribuírem para a construção da nossa identidade. Se repararmos, e qualquer pessoa que se conheça minimamente bem já reparou nisto, todos nós podemos ser divididos numa identidade tripartida: temos um Eu que tentamos mostrar às outras pessoas, que é como gostamos que nos vejam, e que é um bocado forçado; temos um Eu que é aquele que tememos que as pessoa vejam em nós (e atenção que não temos necessariamente de ser assim como tememos), e que advém de inseguranças nossas; e no meio disso tudo, no meio de todo esse nevoeiro, temos aquilo que no Zen se chama de Eu verdadeiro (ou face original). O nosso problema no relacionamento connosco é que não expressamos suficientemente este último Eu. Vamos exprimindo o primeiro, escondendo o segundo, sendo que o terceiro lá vai aparecendo de vez em quando (claro que as quantidades variam muito de pessoa para pessoa!)
Estar constantemente nesse esforço de contenção ou de adopção de papeis socialmente aceites é cansativo, apesar de muitas vezes não nos apercebermos. Muitas pessoa vivem assim toda a sua vida sem se aperceberem! No meu ver, não é possível atingir um estado de verdadeiro equilíbrio interior sem abandonarmos essas máscaras e expressarmos cada vez mais aquilo que somos. E só a partir desse ponto de harmonia com o que somos, que exige segurança acerca do que somos, que exige respeito e aceitação pelo que somos, é que podemos construir uma relação verdadeira. Caso contrário, o que acontece é que as nossas máscaras se andam por aí a relacionar com outras máscaras, num teatro social muito comum, mas profundamente disfuncional. E esta disfunção reflecte-se em grande escala numa relação amorosa! Quanto tempo é que conseguimos segurar uma máscara depois de entrar numa relação? Um dos dois (ou os dois) vai se cansar, começar a mostrar-se mais, a ilusão que a outra pessoa tinha criado desfaz-se, e é muito provável que a relação saia lesada no meio desse processo.

Além deste problema com o nosso próprio ser, há outros problemas que impedem o amor. Outro é a forma como ele se desenrola, que tem muito a ver com a nossa incapacidade de deixarmos as coisas evoluírem com naturalidade, de deixarmos a vida seguir o seu fluxo natural. Diz-me a experiência que para uma coisa seja realmente sólida, tem de ser construída lentamente. No caso do amor o principal ingrediente é a amizade, que requer tempo a ser construída, e o principal inimigo, a pressa, característica extremamente comum nas relações a dois, e que é impulsionada pela paixão.

Mas este não é um problema impossível de ultrapassar. O importante é tomarmos consciência dele, do quanto afecta a nossa capacidade de construir relações, e aí estará dado o primeiro passo para o crescimento. Se nos encontrarmos a nós próprios, se nos expressarmos de forma verdadeira, e construirmos uma relação baseada na verdade e se, sem pressa, construirmos uma forte amizade, impregnada de transparência, de intimidade, temos os principais ingredientes para que o amor surja.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Seremos assim tão complexos?


O conceito de "tabula rasa" de John Locke é um conceito empirista que já foi, em tempos, largamente aceite. Defende que todos nascemos vazios e sem ideias, que todos chegamos de certa forma iguais ao mundo. Esta perspectiva veio a ser gradualmente substituída, em parte graças a estudos das áreas da genética e também da etologia, que defenderam que já nascemos com algum tipo de programação inata, certos mecanismos ancestrais, evolutivos, que resultaram da assimilação gradual de informação por parte dos nossos antepassados. Estas descobertas apontam realmente na direcção de que há predisposições, instintos ou motivações, que nascem connosco, fazendo de nós "tabulas com relevo".

Apesar desta mudança de paradigma, até que ponto podemos afirmar que nascemos com algum conteúdo mental? Uma coisa é afirmar que ao longo de gerações a lidar com tecnologias de dimensões cada vez mais reduzidas ficou inscrito no nosso DNA que seria mais adaptativo ter dedos mais finos para uma manipulação mais funcional das coisas, mas outra coisa será dizer que nascemos com uma ideia ou representação do que é um telemóvel, ou o que significa tecnologia.
Tudo isto para chegar a uma distinção que me parece importante: entre o nosso hardware em constante evolução (ex: o corpo e o córtex cerebral) e o nosso software, que pode ser gerado no hardware/cérebro, mas que não me parece ter a sua origem nesse mesmo cérebro. Não me parece lógico que o software (as coisas que sabemos, que pensamos, as nossas ideias) nasçam connosco, e nesse sentido acho que tem toda a lógica o conceito de "tabula rasa". Pensemos, por analogia, num computador: sem o hardware (disco rígido, processador, motherboard, teclado, etc) não seria possível aceder a nenhum tipo de software (usar um sistema operativo como o windows, manipular a informação sob a forma de música, imagens, etc). Mas apesar de precisarmos do hardware para isso, não é dele que vem essa informação. O hardware é meramente um mecanismo de processamento e armazenamento de informação, e o software vem da informação que é introduzida pelos utilizadores (programação, música, fotos, etc).
Então e de onde é que vem todo esse fluxo de dados, toda essa informação, no caso dos humanos? No nosso caso vem do exterior, e começa a ser assimilada a partir do momento que os nossos mecanismos perceptivos entram em funcionamento. No fundo, acho que somos potentíssimos processadores de informação que vem do exterior, que são impelidos por motivos que a experiência (não só individual, mas de gerações anteriores) gravou em nós, processadores esses que se destacam pela consciência, tema esse que daria para uns quantos milhares de páginas, por isso fica para outra oportunidade.
Começamos então a reunir informação sensorial. Começamos a agrupar a informação sensorial em categorias, de forma a optimizar esse mesmo recolher e processar de nova informação (se tivéssemos de reconhecer individualmente, sem agrupar, todas as cadeiras que vimos ao longo da vida, teríamos de ter uma memória com uma capacidade quase infinita). Atribuímos etiquetas (que funcionam como uma espécie de pegas) às categorias para ser mais fácil manipular a informação. Acumulamos tudo num sistema associativo de memória, em que as coisas que estão relacionadas de alguma forma têm uma ligação mais forte (carro está mais fortemente associado a mota do que a telemóvel). Vamos chamar a todo esse tipo de memórias ou ideias que armazenamos de representações (R). E assim como temos R que estão mais próximas daquilo que sentimos ("a minha casa"), há outras mais abstractas que resultam da categorização ou da associação de ideias ("casa"), mas sempre tendo como base aquilo que foi experienciado sensorialmente (o conjunto de cores e brilhos, sons e cheiros que associamos à nossa casa, por exemplo).
Construímos assim uma grelha ou quadro de R que é a nossa realidade. Uexküll definiu o conceito de "mundo próprio" como uma parcela da realidade total incognoscível (não conseguimos ver muitas coisas que fazem parte da realidade porque o nosso organismo não está preparado para isso) que estamos preparados para processar, a que temos acesso. Pois bem, esta grelha conceptual que construímos com essas nossas representações, é uma espécie de mundo próprio dentro do mundo próprio, um mundo psicológico. Dentro da experiência da realidade já limitada pelas nossas motivações e pelos nossos sentidos, as nossas crenças e expectativas alteram e distorcem ainda mais o que se passa à nossa volta.
Ou seja, ao mesmo tempo que estamos a recolher informação dos sentidos e a juntar essa nova informação às R que já temos, há dois processos com sentido oposto a acontecer. Há um que vai em busca de nova informação de acordo com os nossos instintos (temos fome e vamos à procura de comida, dando mais atenção a tudo o que está relacionado com comida do que com outras necessidades), e há outro que vai à procura de informação ou processa a informação de acordo com as nossas motivações psicológicas (se me identifico mais com determinada ideologia tenho tendência a prestar mais atenção ao discurso de alguém que partilha essa ideologia comigo, do que o discurso de alguém que tem uma ideologia oposta).
Este tipo de funcionamento leva a que nos tornemos num processador semi-automático da informação que vem do ambiente externo. Leva a que estejamos constantemente a contrapor as nossas R da realidade - aquilo que sabemos ou julgamos saber - com aquilo que vem do mundo sensorial (como uma espécie de grelha de correcção), tendendo a dar prioridade às ideias já estabelecidas (afinal somos quase todos tendencialmente conservadores!). Temos uma série de crenças sobre como o mundo é, e procuramos encaixar a informação nova segundo essas crenças. Temos uma série de expectativas sobre o que deve acontecer a seguir na nossa experiência (com base na experiência passada) e, enquanto que as novas informações que vão de encontro as nossas expectativas as reforçam ("aha! realmente tinha razão!"), as que vão contra encontram uma certa resistência ("hmmm... aquele meu colega costuma ser tão antipático e hoje está a ser tão simpático... algo se passa de errado!", mas vai ocorrendo uma certa moldagem/adaptação, com base na nossa flexibilidade/plasticidade cerebral/neuronal. É exactamente este modelo teórico que encara o cérebro como depósito de R sob a forma de memórias, memórias estas que estabelecem padrões/sequências acerca do que é esperado da realidade, que foi proposto pelo informático-neurocientista conceituado Jeff Hawkins - o Modelo de memória preditiva.
Este é um modelo que pretende agregar o vasto universo de dados que foram recolhidos acerca do cérebro num modelo/teoria unificadora, que explique o funcionamento mental e cerebral duma forma relativamente simples, por oposição ao cliché defendido ao longo de séculos, segundo o qual o cérebro é tão complexo, que a sua compreensão não poderia ser atingida a partir do mesmo nível de inteligência, pois "para compreendermos o nosso cérebro, teríamos de ser mais inteligentes do que somos, e se fossemos mais inteligentes, o nosso cérebro seria mais complexo ainda, impossibilitando de novo a sua compreensão".