segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Seremos assim tão complexos?


O conceito de "tabula rasa" de John Locke é um conceito empirista que já foi, em tempos, largamente aceite. Defende que todos nascemos vazios e sem ideias, que todos chegamos de certa forma iguais ao mundo. Esta perspectiva veio a ser gradualmente substituída, em parte graças a estudos das áreas da genética e também da etologia, que defenderam que já nascemos com algum tipo de programação inata, certos mecanismos ancestrais, evolutivos, que resultaram da assimilação gradual de informação por parte dos nossos antepassados. Estas descobertas apontam realmente na direcção de que há predisposições, instintos ou motivações, que nascem connosco, fazendo de nós "tabulas com relevo".

Apesar desta mudança de paradigma, até que ponto podemos afirmar que nascemos com algum conteúdo mental? Uma coisa é afirmar que ao longo de gerações a lidar com tecnologias de dimensões cada vez mais reduzidas ficou inscrito no nosso DNA que seria mais adaptativo ter dedos mais finos para uma manipulação mais funcional das coisas, mas outra coisa será dizer que nascemos com uma ideia ou representação do que é um telemóvel, ou o que significa tecnologia.
Tudo isto para chegar a uma distinção que me parece importante: entre o nosso hardware em constante evolução (ex: o corpo e o córtex cerebral) e o nosso software, que pode ser gerado no hardware/cérebro, mas que não me parece ter a sua origem nesse mesmo cérebro. Não me parece lógico que o software (as coisas que sabemos, que pensamos, as nossas ideias) nasçam connosco, e nesse sentido acho que tem toda a lógica o conceito de "tabula rasa". Pensemos, por analogia, num computador: sem o hardware (disco rígido, processador, motherboard, teclado, etc) não seria possível aceder a nenhum tipo de software (usar um sistema operativo como o windows, manipular a informação sob a forma de música, imagens, etc). Mas apesar de precisarmos do hardware para isso, não é dele que vem essa informação. O hardware é meramente um mecanismo de processamento e armazenamento de informação, e o software vem da informação que é introduzida pelos utilizadores (programação, música, fotos, etc).
Então e de onde é que vem todo esse fluxo de dados, toda essa informação, no caso dos humanos? No nosso caso vem do exterior, e começa a ser assimilada a partir do momento que os nossos mecanismos perceptivos entram em funcionamento. No fundo, acho que somos potentíssimos processadores de informação que vem do exterior, que são impelidos por motivos que a experiência (não só individual, mas de gerações anteriores) gravou em nós, processadores esses que se destacam pela consciência, tema esse que daria para uns quantos milhares de páginas, por isso fica para outra oportunidade.
Começamos então a reunir informação sensorial. Começamos a agrupar a informação sensorial em categorias, de forma a optimizar esse mesmo recolher e processar de nova informação (se tivéssemos de reconhecer individualmente, sem agrupar, todas as cadeiras que vimos ao longo da vida, teríamos de ter uma memória com uma capacidade quase infinita). Atribuímos etiquetas (que funcionam como uma espécie de pegas) às categorias para ser mais fácil manipular a informação. Acumulamos tudo num sistema associativo de memória, em que as coisas que estão relacionadas de alguma forma têm uma ligação mais forte (carro está mais fortemente associado a mota do que a telemóvel). Vamos chamar a todo esse tipo de memórias ou ideias que armazenamos de representações (R). E assim como temos R que estão mais próximas daquilo que sentimos ("a minha casa"), há outras mais abstractas que resultam da categorização ou da associação de ideias ("casa"), mas sempre tendo como base aquilo que foi experienciado sensorialmente (o conjunto de cores e brilhos, sons e cheiros que associamos à nossa casa, por exemplo).
Construímos assim uma grelha ou quadro de R que é a nossa realidade. Uexküll definiu o conceito de "mundo próprio" como uma parcela da realidade total incognoscível (não conseguimos ver muitas coisas que fazem parte da realidade porque o nosso organismo não está preparado para isso) que estamos preparados para processar, a que temos acesso. Pois bem, esta grelha conceptual que construímos com essas nossas representações, é uma espécie de mundo próprio dentro do mundo próprio, um mundo psicológico. Dentro da experiência da realidade já limitada pelas nossas motivações e pelos nossos sentidos, as nossas crenças e expectativas alteram e distorcem ainda mais o que se passa à nossa volta.
Ou seja, ao mesmo tempo que estamos a recolher informação dos sentidos e a juntar essa nova informação às R que já temos, há dois processos com sentido oposto a acontecer. Há um que vai em busca de nova informação de acordo com os nossos instintos (temos fome e vamos à procura de comida, dando mais atenção a tudo o que está relacionado com comida do que com outras necessidades), e há outro que vai à procura de informação ou processa a informação de acordo com as nossas motivações psicológicas (se me identifico mais com determinada ideologia tenho tendência a prestar mais atenção ao discurso de alguém que partilha essa ideologia comigo, do que o discurso de alguém que tem uma ideologia oposta).
Este tipo de funcionamento leva a que nos tornemos num processador semi-automático da informação que vem do ambiente externo. Leva a que estejamos constantemente a contrapor as nossas R da realidade - aquilo que sabemos ou julgamos saber - com aquilo que vem do mundo sensorial (como uma espécie de grelha de correcção), tendendo a dar prioridade às ideias já estabelecidas (afinal somos quase todos tendencialmente conservadores!). Temos uma série de crenças sobre como o mundo é, e procuramos encaixar a informação nova segundo essas crenças. Temos uma série de expectativas sobre o que deve acontecer a seguir na nossa experiência (com base na experiência passada) e, enquanto que as novas informações que vão de encontro as nossas expectativas as reforçam ("aha! realmente tinha razão!"), as que vão contra encontram uma certa resistência ("hmmm... aquele meu colega costuma ser tão antipático e hoje está a ser tão simpático... algo se passa de errado!", mas vai ocorrendo uma certa moldagem/adaptação, com base na nossa flexibilidade/plasticidade cerebral/neuronal. É exactamente este modelo teórico que encara o cérebro como depósito de R sob a forma de memórias, memórias estas que estabelecem padrões/sequências acerca do que é esperado da realidade, que foi proposto pelo informático-neurocientista conceituado Jeff Hawkins - o Modelo de memória preditiva.
Este é um modelo que pretende agregar o vasto universo de dados que foram recolhidos acerca do cérebro num modelo/teoria unificadora, que explique o funcionamento mental e cerebral duma forma relativamente simples, por oposição ao cliché defendido ao longo de séculos, segundo o qual o cérebro é tão complexo, que a sua compreensão não poderia ser atingida a partir do mesmo nível de inteligência, pois "para compreendermos o nosso cérebro, teríamos de ser mais inteligentes do que somos, e se fossemos mais inteligentes, o nosso cérebro seria mais complexo ainda, impossibilitando de novo a sua compreensão".

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