quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Waiting for you...

Será possível atingirmos a verdadeira felicidade sem ninguém com quem a partilhar? A conclusão final da viagem interior de Christopher Johnson Mccandless foi que a felicidade só é real quando partilhada ("happiness is only real when shared"). Será isto verdade? Se repararmos bem na nossa vida, é realmente verdade que em todas as situações em que algo acontece que nos incendeia a alma, o nosso primeiro impulso é partilhar com alguém de quem gostamos. E foi isso que Alexander Supertramp concluiu, no final da sua revolução interior: podemos fugir, podemos ser livres, podemos ser nós próprios, mas enquanto não partilharmos a essência da nossa felicidade e daquilo que somos com alguém, enquanto não amarmos, não seremos verdadeiramente realizados.
No meu ver, o amor é realmente o expoente máximo da viagem que é a vida. É a etapa mais alta, que na minha perspectiva quase ninguém atinge. Sim, as pessoas apaixonam-se. Sim as pessoas namoram, casam-se, partilham experiências. E sim, as pessoas também se habituam, e se conformam. Mas o amor não é nada disso.
O grande problema nesta questão do amor é a forma como é construído. Passo a explicar. A vida é como um mar, um oceano, imenso e profundo. As pessoas, por outro lado, são como ilhas, cada uma no seu espaço pessoal, no seu mundo pessoal, sem saber como comunicar com as outras ilhas. De vez em quando lá se constrói uma ponte que vai de uma ilha até outra mas, diga-se de passagem, nós humanos não somos grandes engenheiros em termos de relações pessoais. Irónico, não é? O ser social por excelência ser um péssimo exemplo do que significa ser um ser social!
O problema destas pontes entre as ilhas são vários. Um desses problemas é que as pontes são feitas com cordas e madeira, e muito frágeis. No meio de tanto papaguear dos nossos pensamentos, de tantas ideias pré-concebidas nas nossas mentes, do que é verdade e do que não é, do que está certo e do que está errado, e por aí adiante, não conseguimos comunicar. Não nos conseguimos ouvir uns aos outros. Quando falamos com alguém, mais do que ouvir, essa pessoa está já a formar o seu juízo do que somos, do que dizemos, e à espera da sua vez para falar. Com uma comunicação assim no geral, é normal que as nossas relações sejam muito frágeis. Isto aplica-se tanto às relações no geral como nas relações amorosas.
Mas parece-me que o maior de todos os problemas dos relacionamentos entre ilhas vai além da construção de pontes. Podemos construir pontes melhores. Podemos usar betão, podemos construir pontes sobre a água, podemos ir de barco, ou até de avião. Os nossos limites são os limites da nossa imaginação! No entanto, por melhores que sejam as pontes, se as começarmos a construir uma ponte em cima de areias movediças, ela vai afundar-se passado pouco tempo. O que quero dizer com isto é que o ponto de partida tem de ser sólido, estar bem estabelecido, antes de almejarmos algo mais longínquo, mais ambicioso. Conclusão:

Não podemos construir uma relação sólida a dois enquanto não construirmos uma relação sólida connosco!

Depois de termos essa relação connosco, aí sim, podemos construir uma ponte para as outras ilhas, construir verdadeiras amizades (e outras relações) e, se soubermos esperar, pode ser que o amor aconteça. O que estou a dizer é, portanto, que nós não temos boas relações connosco, e esse é um dos (dois, e o outro ficará para outra altura) grandes motivos pelos quais o amor não acontece. E o que é uma boa relação connosco? É uma relação em que nos respeitamos e aceitamos pelo que somos. 90% das pessoas responderia a isto com um simples "mas eu respeito-me e aceito-me como sou". É normal. Mas se olharmos lá bem no fundo, se formos em busca de nós próprios, se tentarmos compreender a forma como funcionamos, vemos que não é bem assim.
Apesar de eu não ter simpatizado muito logo à partida com a teoria de Freud, houve um conjunto de ideias que retive, especificamente em relação ao jogo de forças Id-Ego-Superego. Esse conjunto de ideias começou a ganhar mais sentido à medida que me conhecia mais profundamente, à medida que conhecia outras teorias, nas quais revia essa mesma ideia de que há várias forças a contribuírem para a construção da nossa identidade. Se repararmos, e qualquer pessoa que se conheça minimamente bem já reparou nisto, todos nós podemos ser divididos numa identidade tripartida: temos um Eu que tentamos mostrar às outras pessoas, que é como gostamos que nos vejam, e que é um bocado forçado; temos um Eu que é aquele que tememos que as pessoa vejam em nós (e atenção que não temos necessariamente de ser assim como tememos), e que advém de inseguranças nossas; e no meio disso tudo, no meio de todo esse nevoeiro, temos aquilo que no Zen se chama de Eu verdadeiro (ou face original). O nosso problema no relacionamento connosco é que não expressamos suficientemente este último Eu. Vamos exprimindo o primeiro, escondendo o segundo, sendo que o terceiro lá vai aparecendo de vez em quando (claro que as quantidades variam muito de pessoa para pessoa!)
Estar constantemente nesse esforço de contenção ou de adopção de papeis socialmente aceites é cansativo, apesar de muitas vezes não nos apercebermos. Muitas pessoa vivem assim toda a sua vida sem se aperceberem! No meu ver, não é possível atingir um estado de verdadeiro equilíbrio interior sem abandonarmos essas máscaras e expressarmos cada vez mais aquilo que somos. E só a partir desse ponto de harmonia com o que somos, que exige segurança acerca do que somos, que exige respeito e aceitação pelo que somos, é que podemos construir uma relação verdadeira. Caso contrário, o que acontece é que as nossas máscaras se andam por aí a relacionar com outras máscaras, num teatro social muito comum, mas profundamente disfuncional. E esta disfunção reflecte-se em grande escala numa relação amorosa! Quanto tempo é que conseguimos segurar uma máscara depois de entrar numa relação? Um dos dois (ou os dois) vai se cansar, começar a mostrar-se mais, a ilusão que a outra pessoa tinha criado desfaz-se, e é muito provável que a relação saia lesada no meio desse processo.

Além deste problema com o nosso próprio ser, há outros problemas que impedem o amor. Outro é a forma como ele se desenrola, que tem muito a ver com a nossa incapacidade de deixarmos as coisas evoluírem com naturalidade, de deixarmos a vida seguir o seu fluxo natural. Diz-me a experiência que para uma coisa seja realmente sólida, tem de ser construída lentamente. No caso do amor o principal ingrediente é a amizade, que requer tempo a ser construída, e o principal inimigo, a pressa, característica extremamente comum nas relações a dois, e que é impulsionada pela paixão.

Mas este não é um problema impossível de ultrapassar. O importante é tomarmos consciência dele, do quanto afecta a nossa capacidade de construir relações, e aí estará dado o primeiro passo para o crescimento. Se nos encontrarmos a nós próprios, se nos expressarmos de forma verdadeira, e construirmos uma relação baseada na verdade e se, sem pressa, construirmos uma forte amizade, impregnada de transparência, de intimidade, temos os principais ingredientes para que o amor surja.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Seremos assim tão complexos?


O conceito de "tabula rasa" de John Locke é um conceito empirista que já foi, em tempos, largamente aceite. Defende que todos nascemos vazios e sem ideias, que todos chegamos de certa forma iguais ao mundo. Esta perspectiva veio a ser gradualmente substituída, em parte graças a estudos das áreas da genética e também da etologia, que defenderam que já nascemos com algum tipo de programação inata, certos mecanismos ancestrais, evolutivos, que resultaram da assimilação gradual de informação por parte dos nossos antepassados. Estas descobertas apontam realmente na direcção de que há predisposições, instintos ou motivações, que nascem connosco, fazendo de nós "tabulas com relevo".

Apesar desta mudança de paradigma, até que ponto podemos afirmar que nascemos com algum conteúdo mental? Uma coisa é afirmar que ao longo de gerações a lidar com tecnologias de dimensões cada vez mais reduzidas ficou inscrito no nosso DNA que seria mais adaptativo ter dedos mais finos para uma manipulação mais funcional das coisas, mas outra coisa será dizer que nascemos com uma ideia ou representação do que é um telemóvel, ou o que significa tecnologia.
Tudo isto para chegar a uma distinção que me parece importante: entre o nosso hardware em constante evolução (ex: o corpo e o córtex cerebral) e o nosso software, que pode ser gerado no hardware/cérebro, mas que não me parece ter a sua origem nesse mesmo cérebro. Não me parece lógico que o software (as coisas que sabemos, que pensamos, as nossas ideias) nasçam connosco, e nesse sentido acho que tem toda a lógica o conceito de "tabula rasa". Pensemos, por analogia, num computador: sem o hardware (disco rígido, processador, motherboard, teclado, etc) não seria possível aceder a nenhum tipo de software (usar um sistema operativo como o windows, manipular a informação sob a forma de música, imagens, etc). Mas apesar de precisarmos do hardware para isso, não é dele que vem essa informação. O hardware é meramente um mecanismo de processamento e armazenamento de informação, e o software vem da informação que é introduzida pelos utilizadores (programação, música, fotos, etc).
Então e de onde é que vem todo esse fluxo de dados, toda essa informação, no caso dos humanos? No nosso caso vem do exterior, e começa a ser assimilada a partir do momento que os nossos mecanismos perceptivos entram em funcionamento. No fundo, acho que somos potentíssimos processadores de informação que vem do exterior, que são impelidos por motivos que a experiência (não só individual, mas de gerações anteriores) gravou em nós, processadores esses que se destacam pela consciência, tema esse que daria para uns quantos milhares de páginas, por isso fica para outra oportunidade.
Começamos então a reunir informação sensorial. Começamos a agrupar a informação sensorial em categorias, de forma a optimizar esse mesmo recolher e processar de nova informação (se tivéssemos de reconhecer individualmente, sem agrupar, todas as cadeiras que vimos ao longo da vida, teríamos de ter uma memória com uma capacidade quase infinita). Atribuímos etiquetas (que funcionam como uma espécie de pegas) às categorias para ser mais fácil manipular a informação. Acumulamos tudo num sistema associativo de memória, em que as coisas que estão relacionadas de alguma forma têm uma ligação mais forte (carro está mais fortemente associado a mota do que a telemóvel). Vamos chamar a todo esse tipo de memórias ou ideias que armazenamos de representações (R). E assim como temos R que estão mais próximas daquilo que sentimos ("a minha casa"), há outras mais abstractas que resultam da categorização ou da associação de ideias ("casa"), mas sempre tendo como base aquilo que foi experienciado sensorialmente (o conjunto de cores e brilhos, sons e cheiros que associamos à nossa casa, por exemplo).
Construímos assim uma grelha ou quadro de R que é a nossa realidade. Uexküll definiu o conceito de "mundo próprio" como uma parcela da realidade total incognoscível (não conseguimos ver muitas coisas que fazem parte da realidade porque o nosso organismo não está preparado para isso) que estamos preparados para processar, a que temos acesso. Pois bem, esta grelha conceptual que construímos com essas nossas representações, é uma espécie de mundo próprio dentro do mundo próprio, um mundo psicológico. Dentro da experiência da realidade já limitada pelas nossas motivações e pelos nossos sentidos, as nossas crenças e expectativas alteram e distorcem ainda mais o que se passa à nossa volta.
Ou seja, ao mesmo tempo que estamos a recolher informação dos sentidos e a juntar essa nova informação às R que já temos, há dois processos com sentido oposto a acontecer. Há um que vai em busca de nova informação de acordo com os nossos instintos (temos fome e vamos à procura de comida, dando mais atenção a tudo o que está relacionado com comida do que com outras necessidades), e há outro que vai à procura de informação ou processa a informação de acordo com as nossas motivações psicológicas (se me identifico mais com determinada ideologia tenho tendência a prestar mais atenção ao discurso de alguém que partilha essa ideologia comigo, do que o discurso de alguém que tem uma ideologia oposta).
Este tipo de funcionamento leva a que nos tornemos num processador semi-automático da informação que vem do ambiente externo. Leva a que estejamos constantemente a contrapor as nossas R da realidade - aquilo que sabemos ou julgamos saber - com aquilo que vem do mundo sensorial (como uma espécie de grelha de correcção), tendendo a dar prioridade às ideias já estabelecidas (afinal somos quase todos tendencialmente conservadores!). Temos uma série de crenças sobre como o mundo é, e procuramos encaixar a informação nova segundo essas crenças. Temos uma série de expectativas sobre o que deve acontecer a seguir na nossa experiência (com base na experiência passada) e, enquanto que as novas informações que vão de encontro as nossas expectativas as reforçam ("aha! realmente tinha razão!"), as que vão contra encontram uma certa resistência ("hmmm... aquele meu colega costuma ser tão antipático e hoje está a ser tão simpático... algo se passa de errado!", mas vai ocorrendo uma certa moldagem/adaptação, com base na nossa flexibilidade/plasticidade cerebral/neuronal. É exactamente este modelo teórico que encara o cérebro como depósito de R sob a forma de memórias, memórias estas que estabelecem padrões/sequências acerca do que é esperado da realidade, que foi proposto pelo informático-neurocientista conceituado Jeff Hawkins - o Modelo de memória preditiva.
Este é um modelo que pretende agregar o vasto universo de dados que foram recolhidos acerca do cérebro num modelo/teoria unificadora, que explique o funcionamento mental e cerebral duma forma relativamente simples, por oposição ao cliché defendido ao longo de séculos, segundo o qual o cérebro é tão complexo, que a sua compreensão não poderia ser atingida a partir do mesmo nível de inteligência, pois "para compreendermos o nosso cérebro, teríamos de ser mais inteligentes do que somos, e se fossemos mais inteligentes, o nosso cérebro seria mais complexo ainda, impossibilitando de novo a sua compreensão".

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

To think or not to think

THAT is the question.
"To be or not to be" é uma questão de resolução relativamente simples e directa. Somos. É possível que haja uma alternativa, que haja um estado de não-existência, e apenas não o consigamos imaginar devido às limitações da nossa mente: só conseguimos imaginar com base naquilo que experienciamos e assimilamos ao longo da nossa curta existência (as representações mentais que constituem a nossa realidade individual são criadas a partir da informação que recolhemos do meio ambiente, directamente, ou por associação de ideias, e por isso não conseguimos criar uma imagem do desconhecido). Há, no entanto, relatos de estados em que é experienciada essa não-existência, mas aí fala-se normalmente da não existência do pensamento ou do "eu", algo que é relatado em culturas/filosofias relacionadas com a denominada espiritualidade, a prática da meditação, etc. Mas mesmo nesses casos julgo que continuamos a ser. O pensamento pode cessar, podemos existir num nível diferente ou de uma forma diferente, se calhar com fronteiras diferentes (quem sabe mais interligados com o que nos rodeia), mas continuamos a existir, a ser.
Portanto, e completando um pouco a linha de pensamento de Descartes ("Penso, logo existo"): mesmo sem pensar, existimos. Continuámos a ter uma existência corpórea, e quem sabe mais do que isso. Na minha opinião, a questão mais pertinente que pode ser colocada é:

Pensar ou não pensar? This is the real question.

Esta é uma questão que fará mais sentido para aqueles que se situam no ponto de encontro (e de certo conflito) entre, por um lado, a prática do sentir e do viver duma forma total, proveniente muitas vezes de culturas orientais (para não haver confusões com filosofias/religiões, como o Bushido, o Hinduísmo, ou o Budismo, deixo o Zen ou o Taoismo como referência), e por outro lado a prática da introspecção, aliada a uma paixão pela razão e pela lógica, assim como pela filosofia, que são sustentadas por um tipo de pensamento tipicamente ocidental e analítico, em oposição à abordagem holistica do oriente. Viver o momento presente numa total entrega, sentido ao máximo, unindo-nos à vida à nossa volta? Ou tentar compreender esse mesmo mundo através da conceptualização, atribuindo significados e analisando?
São duas abordagens que não são opostas, mas são incompatíveis, na medida em que não podem ocorrer em simultâneo. Na abordagem holística o pensamento pára. A atenção expande-se, redistribui-se, e a energia mental dilui-se pelas sensações, pelos sentidos. Deixa-se de tentar compreender pela razão e pela lógica aquilo que não pode ser compreendido. Apreende-se o próprio ser e tudo o que nos rodeia duma forma total, integrada, havendo mesmo relatos de estados avançados em que a fronteira entre o EU e o que nos rodeia se dilui.
Na abordagem analítica atribui-se significados ao que nos rodeia, de forma a melhor controlar o ambiente circundante e de forma a poder comunicar melhor com os outros seres da nossa espécie. Se não dividíssemos o todo em partes e déssemos nomes à essas partes, como é que poderíamos comunicar com as outras pessoas (deixaríamos de poder diferenciar entre o céu e a terra, entre o tronco da árvore e as suas folhas, etc.)? Mas é importante não esquecer que o sistema simbólico que criámos a partir da dissecação e etiquetação da realidade, e a própria realidade que ele representa, são coisas distintas. e quando estamos perante uma experiência e lhe atribuímos automaticamente um símbolo, deixamos de experienciar a realidade para experienciar o símbolo.
É aqui que divergem ao máximo as duas abordagens: a analítica aplica automaticamente essa grelha conceptual à realidade circundante e passa a viver dentro dessa grelha, a pensar a vida (olhamos para uma montanha e em vez de experienciarmos o momento, damos um nome), sendo muito mais difícil acontecer um contacto directo com a realidade; a holística tende a remover as fronteiras (ou a não criar) artificiais/conceptuais, vivendo a vida como um todo.

Pensar ou não pensar? É difícil abandonar a "escola" analítica que nos acompanha desde o berço. É difícil remover uma formatação tão profunda. E será que vale mesmo a pena? Torna-se ainda mais difícil abandoná-la quando o pensar é, acima de tudo, um grande prazer. Quando se considera a filosofia uma monumental arte. A razão e a lógica puras são, na minha humilde opinião, a forma mais próxima de perceber o real duma forma menos subjectiva e egocêntrica, logo a seguir à experiência directa da realidade. Mas para quê admirar um quadro quando se pode presenciar a paisagem original? Da mesma forma, para que pensar a realidade se a podemos viver? Pensar ou não pensar?

Aceitam-se sugestões...

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A falácia do homo/idio-centrismo

Homo - referente ao Homem, no sentido de ser pertencente à espécie humana.
Idio - referente ao particular, ao que é característico do indivíduo.

Estas duas ideias estão na base duma das maiores falácias da razão humana, que tem por base nada mais nada menos que o egocentrismo inerente ao funcionamento do ser humano. Somos todos peças num puzzle universal, cada um cumprindo o seu propósito natural de manter a sua sobrevivência, assim como a riqueza e diversidade naturais. Neste universo composto por uma infindável variedade de formas energéticas, em diversos estados (alguns dos quais provavelmente nem chegamos a conhecer), dividindo-se entre vivos e não vivos, em vertebrados e não vertebrados, humanos e animais. Como esta distinção me faz confusão. Somos animais. Ser animal faz parte da nossa natureza, e como tal possuímos características comuns com os outros animais, apesar de gostarmos de nos distinguir desses seres naturais. Essa é apenas parte do erro que cometemos na nossa abordagem da vida. Tanto ao nível individual como ao nível da espécie, gostamos de nos sentir únicos, diferentes, distintos... reforça-nos a identidade, o ego. Isso reflecte-se num sem fim de fenómenos sociais, e reflecte-se a um nível mais global na separação que tanto gostamos de reforçar entre nós e as outras espécies animais, baseando-nos quase exclusivamente nas nossas capacidades intelectuais. Não me irei referir quanto à importância que julgo ter a aplicação dessas capacidades, mais do que as capacidades em si, e às consequências que as aplicações das nossas capacidades trouxeram ao mundo à nossa volta.
Essa capacidade intelectual e essa identidade separada das outras entidades vivas separa-nos, torna-nos únicos e especiais. E assim pensamos que o mundo gira à volta da espécie humana, que a natureza vive para nós. É difícil sair da nossa esfera egocêntrica, no entanto parece-me sensato e racional concluir que nada mais representamos para essa natureza que qualquer outra espécie. Nada mais representamos que qualquer outra forma de existência, qualquer outra forma de energia, mesmo que não viva.
Somos uma peça do puzzle, uma parte da engrenagem. O puzzle só se completa com todas as peças, e a engrenagem só funciona com um funcionamento equilibrado de todas as peças. Quando uma peça tenta funcionar sozinha a engrenagem não tarda em quebrar. É assim tão difícil ver que somos menos significativos do que pensamos neste mapa natural? Falo tanto a nível individual como em termos de espécie. É assim tão impossível ver que, em termos individuais, nada mais somos que qualquer outro indivíduo? Que a cor, o estatuto, o poder, o pensamento, são irrelevantes para a posição que ocupamos na natureza? Que a razão que possuímos é apenas mais uma capacidade? Alguns animais também possuem características que nós não possuímos e isso não os torna superiores a nós. Parece-me possível e proveitoso usar essa característica exclusiva para um percebimento verdadeiro das coisas, ser racional e objectivo e perceber que nada mais somos que... que nada!

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Wall-E

Depois de me terem recomendado, finalmente tomei a iniciativa de ver um filmes que desde o início nunca despertou o meu interesse: Wall-E. Poucos minutos de filme tinham passado quando me apercebi de que este não é apenas mais um filme de animação. Ao longo do filme não consegui deixar de ficar comovido, e aquando do seu fim era inevitável sentir-me profundamente inspirado.
Coloquemos de parte todos os preconceitos acerca dos filmes de animação. Esqueçamos o facto (pouco relevante para o efeito) de que os robots não têm características humanas. O Filme passa-se num futuro não tão distante, em que a tralha acumulada pelos seres humanos e o envenenamento do ambiente chegaram a um ponto em que todos têm de sair do planeta pois este tornou-se inabitável. Os habitantes partem a bordo de uma nave espacial chamada "Axiom", num cruzeiro com a duração de 5 anos, tempo necessário à limpeza do planeta. Wall-E é um robot pré-programado para essa mesma limpeza, mas é também um robot com características humanas como a curiosidade, e acima de tudo a busca do amor. Wall-E é um robot que anseia todos os dias pela vinda desse amor que irá dar cor à sua vida. Passados aproximadamente 700 anos, chega então o dia em que um robot enviado pela Axiom e programado para determinar se as condições de vida na Terra já são habitáveis, e o amor à primeira vista surge na vida de Wall-E, que faz tudo para poder estar junto de Eve. Wall-E segue Eve de volta ao Axiom, onde os seres humanos vivem em condições desumanizantes: vivem num estado quase vegetal pois até as mais pequenas tarefas são executadas por robots. Vivem num estado de obesidade mórbida e ignorância profunda, sem conhecer o planeta que abandonaram há séculos, sem saber o que é ser humano, o que é amar. A demanda de Wall-E em busca de Eve ilumina a vida desses passageiros com amor e liberdade, devolve-lhes a sua humanidade. O resto do filme fica para quem decidir vê-lo.
Esta é uma bonita história de amor, desse amor perfeito e sem barreiras que é uma parte essencial de quem é humano. É irónico o facto de ser um robot apaixonado a ensinar aos "vegetais" que habitavam a Axiom o que é amar. Mas este filme pode também ser encarado como uma crítica ao avanço tecnológico desenfreado e que nos desumaniza. É também uma crítica ao comportamento humano irresponsável, que destroi o berço onde foi criado. Pode, se estivermos abertos a isso, despertar a nossa consciência para o que é importante mudar, como a forma tratar a vida não humana à nossa volta... pode incitar-nos a ser mais humanos, a amar mais. No fundo, que há mais do que isso? Que há mais do que o amor?

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Praga és tu, pá!

Em que consiste uma praga? Uma praga diz respeito ao crescimento desregulado de uma espécie, que desequilibra o ecossistema onde essa espécie se insere. Leva normalmente a um consumo descontrolado dos recursos (como a grande praga da Filoxera, que afectou a Europa no século XIX), afectando também (directa ou indirectamente) as outras espécies que integram o ecossistema. Sabemos que uma praga segue esse tipo de crescimento nada adequado, e que geralmente acaba por surgir uma força reguladora - a humana - que combate esse crescimento, tentando instaurar um novo equilíbrio. Questiono-me, e mesmo depois de alguma pesquisa, continuo sem saber quais as consequências no caso de não haver esse controlo (que no nosso caso, diga-se de passagem, é mais um controlo egoísta para preservar as nossas condições de vida, do que para preservar o equilíbrio de todo o ecossistema terrestre). Mas será necessário pensar muito ou ir muito longe para descobrirmos um exemplo desse tipo de praga que não é controlada?

Encarando o contexto do mundo vivo duma forma mais abrangente, não só no que diz respeito a pragas, podemos encontrar uma grande variedade genética que enriquece a vida no nosso planeta, assim como um leque sem fim de seres vivos. Estes seres adaptam-se ao meio onde se inserem, de forma a poderem extrair dele os recursos necessários à sua sobrevivência e à manutenção da sua existência. Cada espécie animal possui características adaptadas ao local onde habita, de forma a poder sobreviver aos perigos existentes, e a poder extrair o alimento de que necessita para garantir a sua descendência genética. E a nossa espécie não é excepção, ou será? Assim como as plantas desenvolveram raízes (mais ou menos profundas) de forma a extrair os nutrientes do solo, e folhas capazes de transformar a energia luminosa em energia química, também os seres humanos se adaptam ao meio onde se encontram. Iniciamos a nossa viagem como colectores, e fomos evoluíndo rumo ao cultivo e extracção dos alimentos do solo, gradualmente melhorando as técnicas, que se tornam mais e mais eficazes, tendo por background uma evolução do conhecimento científico.

Além da participação nessa demanda por recursos, outra característica dessa grande variedade de seres vivos é que interagem com os outros seres vivos do ecossistema, tentando garantir um território, a sua sobrevivência, ou para deles extrair alimentos necessários à sua dieta natural, estabelecendo-se assim uma cadeia hierárquica. Estes seres inserem-se num sistema complexo e equilibrado, que mantém a sobrevivência das espécies, fornecendo-lhes os recursos necessários, mantendo o número de exemplares de cada espécie num nível aceitável. E assim se atinge um fabuloso equilíbrio entre um sem fim de espécies que interagem entre elas, algo que parece obra resultante de algum tipo de inteligência.

Resumindo, a natureza viva (mas também a não viva, pois esta sustenta a primeira), segue um equilíbrio digno de um óscar da existência, em que os seres vivos retiram do meio os recursos que necessitam duma forma moderada, e interagem com os outros seres vivos do ecossistema duma forma equilibrada. Mas voltando à questão das excepções...

O homo sapiens sapiens: que exemplar extremamente complicado, mais não seja pelos imprescrutáveis meandros da sua mente, e pela não menos complexa forma como interage com o seu grupo. Será que somo de alguma forma uma excepção ao equilíbrio natural?
Como a psicologia explica, nós seres humanos temos uma perspectiva muito subjectiva e enviesada da realidade, sendo que uma das consequências é, entre outras, vermos aquilo que queremos ver, de forma a conseguirmos obter uma visão mais positiva de nós e dos nossos (o que também se aplica a nós como grupo humano). Vemos o mundo duma forma alterada pela nossa identidade, pelas nossas crenças, pela nossa experiência, mas também pela identidade e experiência do grupo. E é extremamente difícil sair deste visão subjectiva e ver as coisas duma forma mais objectiva.

Mas, no que toca à gestão de recursos e de relacionamentos inter-espécies, não me parece assim tão difícil olharmos duma forma global para a história do mundo e do ser humano, olharmos para o nosso comportamento de uma forma geral e para a nossa evolução. Com o passar dos anos, o Homem continuamente expandiu o seu conhecimento, o que levou ao aprimorar de todo o tipo de tecnologias e técnicas. Cada vez sabemos mais, o que nos permite tornarmos cada vez mais eficientes, quer seja na extracção dos recursos do planeta (ao ponto de extraírmos muito mais do que precisamos e serem desperdiçadas grandes quantidades de alimento, por exemplo), quer seja na construção de armas cada vez mais mortíferas, e por aí adiante. Parece-me fazer sentido que o poder económico tenha um papel muito importante neste aumento desregulado, ao apelar à produtividade (pois precisa dela para subsistir e manter o seu lucro), o que leva a situações como a que se verifica no pantanal de Mato Grosso - mais info aqui. Mas esta péssima influência económica não tem vontade própria, sendo que apenas reflecte a ganância inerente ao ser Humano. Essa ganância, essa vontade de ter mais, de saber mais, ou o medo de perder o que se tem e de não se ter os recursos necessários no futuro que se aproxima, são factores que incitam a acumulação. Desta forma, exploramos o ecossistema duma forma não sustentada, nada moderada, e sem ter em consideração a manutenção do equilíbrio entre a complexa rede de seres vivos. Acabamos por destruir paisagens, por extinguir espécies, e a dificuldade de mudança deve-se muito a não conseguirmos muitas vezes prever as consequências futuras dos nossos actos presentes (acerca deste tema e não só, aconselho o livro do psicólogo Daniel Gilbert "Stumbling on happiness", cuja versão portuguesa se chama "Tropeçando na felicidade"). Felizmente e infelizmente chegámos a uma limiar em que é inevitável fechar os olhos, pois as consequências são cada vez mais óbvias, e isto reflecte-se numa mudança (lenta, na minha opinião) de crenças, atitudes e comportamentos. Será que vamos a tempo?
Longe de mim criticar o aprofundar do conhecimento (como amante da ciência que sou), e longe de mim censurar o aprimorar da tecnologia e da técnica. Mas infelizmente, o que o escritor e produtor Stan Lee expressou num dos seus filmes, sob a forma das palavras "Com um grande poder, vem uma grande responsabilidade", não se verifica na prática, e essa responsabilidade é substituída por um grande egocentrismo e inconsciência. Não sabemos usar o conhecimento que adquirimos, e esse é o cerne do problema. Tomemos por exemplo o recurso à produção de alimentos transgénicos. Sem deixar de ter em consideração as vantagens de ter alimentos mais resistentes e adequados às nossas necessidades, que consequências trarão a longo prazo para o nosso ecossistema? Que impacto teram esses alimentos "melhorados" nos seus concorrentes naturais?

Mas a extracção e processamento de recursos e a falta de consideração pelos outros membros vivos do ecossistema não são os únicos problemas do comportamento humano. Entre um infindável número que poderia listar aqui, parece-me importante referir um crescimento extremamente exagerado do número de membros da nossa família humana, o que sem dúvida contribuí para os problemas referidos anteriormente. Culpem a testosterona, culpem a falta de educação, mas o certo é que temos atingido proporções preocupantes. Sem ter a intenção de puxar a brasa à minha sardinha, parece-me que cabe à psicologia e à psicologia social o papel de, após compreender a forma como pensamos, sentimos e agimos, descobrir como emendar alguns dos "bugs" mentais que se verificam, e como melhor sensibilizar e educar as pessoas, passando por uma grande mudança de atitudes.

Tudo isto para resumir uma visão um pouco pessimista do mundo, que não deixa de ser também esperançosa: não sabemos usar o nosso poder com responsabilidade. Não sabemos prever as consequências futuras das nossas acções, e partilhamos pelo menos um dos hobbies dos coelhos. Obviamente que existem outros factores, como a poluição ambiental, que por sua vez está também associada ao crescimento não sustentado. Estes factores referidos levam a uma destruição do ambiente, a uma destruição das outras espécies, que levará em última instância, e caso a consciência e o rumo dos acontecimentos não mudem, à destruição da nossa espécie. Assim como nós seres humano tentamos controlar a progressão de pragas que se reproduzem e consomem recursos de forma desmedida, e ameaçam a nossa estabilidade, também a inteligência da natureza certificar-se-á de controlar esta praga (que naturalmente não consegue encarar-se como tal), de forma a restaurar de novo o equilíbrio natural. Esta é uma visão radical, mas real na sua subjectividade. De qualquer das formas, se não se despertar a consciência para uma necessidade de mudança... bem, o problema é nosso, não é?

sábado, 15 de agosto de 2009

Between Angels and Insects

A música é uma arte, uma forma de exprimir o que nos vai na alma. Assim como alguns o fazem através da pintura, da mera utilização de palavras como a poesia, do desenho, e uma infinidade de outras artes, a música pode ser uma forma muito profunda de nos exprimir-mos. Esta forma de arte pode ser aliada a outra forma de arte, que é a literatura, nascendo assim as chamadas canções. Claro que nem tudo o que motiva o surgimento deste tipo de arte mista é artístico, pois há outros interesses envolvidos: há a criação de uma imagem (há conjuntos musicais que se dedicam mais à construção de uma imagem do que outros), há o lucro (especialmente da parte de terceiros, como os representantes dos músicos), há o entretenimento (expressão mais virada para o público). Não tendo nada contra os músicos que trabalham a sua imagem e que são entretainers acima de tudo, aprecio especialmente aqueles que sobem ao palco e entram naquela espécie de transe em que o mundo desaparece, sobrando a sua alma, a sua voz e/ou o seu instrumento.

Essa intersecção de variáveis de definem um artista musical levam muitas vezes a que as pessoas menosprezem um artista, não conseguindo apreciar um determinado nível (como o literário) porque este não as agrada a um outro nível (como o da imagem). Tomemos por exemplo o Pedro Abrunhosa, que na minha opinião é um grande poeta dos nossos dias: o facto de não cantar (facto por ele admitido) impede muitas vezes que as pessoas prestem atenção às suas letras, não conseguindo assim ter uma visão mais abrangente da obra do artista. O mesmo poderá passar-se com o grande crítico social, Gabriel O Pensador. Sem querer tomar o partido de ninguem, quem sabe o Marilyn Manson não terá nas suas músicas mensagens com alguma profundidade? Mas a imagem gera um grande impacto nas pessoas, impedindo muitas vezes que consigamos ir mais longe.

Acho que essa barreira da imagem funciona nos dois sentidos: pode ser uma má imagem inicial que nos impeça de ver a profundidade literária; mas também pode ser uma boa imagem, ou melhor dizendo comercial, que nos impeça de ver outros conteúdos da arte musical. Inúmeras bandas nos chegam incessantemente dos Estados Unidos, cuja imagem e ritmos nos cativam, impedindo-nos de ir além das aparências. No entanto, acho que o factor língua tem aqui um grande peso: o facto de uma canção nos chegar escrita noutra língua dificulta que interpretemos a sua letra, fazendo com que nos voltemos mais para outros factores (como a música, a imagem, etc) - claro que isto varia de pessoa para pessoa. Isto pode ter a ver com o facto de, quando ouvimos uma música na nossa língua, ser quase inevitável acedermos ao significado da sua letra, pois é um processo já automático que exercitamos desde que aprendemos a falar; no entanto, quando ouvimos uma canção em inglês, por exemplo, já é necessária muito mais atenção da nossa parte para acedermos ao significado das palavras, tendo também em conta que a nossa atenção se distribui por outros factores.

Após este pequeno aparte linguístico, voltemos à questão de como alguns factores, como a imagem, podem desviar a nossa atenção de outros conteúdos musicais. Tomemos por exemplo uma banda que, apesar de ter muitos fãs (especialmente jovens), pode perfeitamente ser rotulada como "uma banda de jovens rockeiros, darks e rebeldes, que dizem palavrões e gritam nas músicas". Estou a falar dos Papa Roach, e para terminar vou deixar aqui o exemplo específico duma música de que gosto especialmente, para mostrar algum conteúdo literário crítico, e como nos podemos enganar facilmente (atenção que não estou a generalizar a conclusão à banda no geral, e a todas as suas músicas). A canção chama-se Between Angels and Insects:

Estrofes
I just wanna be heard, loud and clear are my words, comin’ from within man
Tell ‘em what you heard, it's about a revolution
In your heart and in your mind, you can't find the conclusion
Lifestyle and obsession, diamond rings get you nothin’ but a lifelong lesson
And your pocketbook stressin’, you're a slave to the system
Workin jobs that you hate, for that shit you don't need
It's too bad the world is based on greed, step back and see
Stop thinkin’ bout yourself, start thinkin’ bout

Cuz everything is nothing, and emptiness is in everything
This reality is really just a fucked up dream
With the flesh and the blood that you call your soul, flip it inside out
It's a big black hole, take your money burn it up like an asteroid
Possessions, they are never gonna fill the void, take it away
And learn the best lesson, the heart, the soul, the life, the passion

Refrão
There's no money, there's no possession, only obsession, I don't need that shit
Take my money, take my possession, take my obsession, I don't need that shit

Bridge
Money, possession, obsession, present yourself, press your clothes
Comb your hair, clock in, you just can't win, just can't win
And the things you own, own you

Segundo o Jacoby Shaddix (vulgarmente conhecido por Coby Dick): Nestas palavras que "vêm bem lá de dentro", procura revolucionar a confusão que vai dentro de nós, com destaque para aquela que nos leva a seguir estilos de vida orientados para a aquisição de bens materiais, que não nos trazem nada, senão uma lição no final: que esses bens nunca irão preencher o vazio que temos dentro de nós. Tornámo-nos escravos dum sistema, que nos cativa com riqueza exterior, prometendo assim a felicidade. Nesse sistema sujeitámo-nos a trabalhos de que não gostamos verdadeiramente, mas que nos dão o dinheiro para conseguirmos comprar a felicidade de plástico que não nos irá satisfazer nunca. Isto tudo porque faz parte do ser humano a ganância, a ambição, uma fome de ter mais, com as quais o sistema joga para manter as pessoas presas a esses tais empregos, e para que estas perpetuem esse mesmo sistema. Faz-nos crer que precisamos de imensas coisas, para que continuemos a trabalhar como formigas obreiras nas construção da nossa prisão.

Mas se nos afastarmos um pouco e observarmos as coisas com mais clareza: O dinheiro é vazio, não tem valor intrínseco. As posses são vazias e há apenas uma obsessão constante em ter mais, em ter o que os outros têm também, e essa obsessão sim impede-nos de sermos felizes. Todas as coisas não significam nada. O vazio está em tudo, e também dentro de nós. Isto a que chamamos de realidade não passa de um "sonho" (uma interpretação subjectiva), em que tentamos preencher o vazio dentro de nós com essas coisas também vazias (que julgamos possuir, mas acabam por nos possuir), em que cultivamos o nosso exterior como se fosse a nossa alma e tudo o que temos. O culto do exterior e as posses nunca irão tornar-nos felizes, mas poderão fazer-nos aprender a verdadeira lição: a do coração, da alma, da vida, e da paixão.

Obrigado, Coby, pela chamada de atenção, e pelas tuas palavras verdadeiras, que infelizmente esbarram no preconceito das pessoas e perdem o seu efeito.

Uma flor, uma analogia, uma libertação

A flor de Lótus é uma flor venerada na Índia e no Japão, o que se deve a possuir uma simbologia muito profunda. A semente de Lótus pode ficar à volta de 5.000 anos sem água, até que surja a quantidade perfeita de humidade, para que possa germinar. Esta flor nasce da lama, sendo que só se abre quando atinge a superfície, mostrando as suas pétalas que possuem a interessante característica de auto-limpeza (repelindo microorganismos e sujidade). O botão da flor tem a forma de um coração, e suas pétalas não caem quando a flor morre, apenas secam. É ainda a única planta com a capacidade de regular seu calor interno, mantendo-o por volta de 35º, aproximadamente a mesma temperatura do corpo humano.

É quase inevitável estabelecer uma ponte entre esta flor e o chamado "crescimento espiritual" do ser humano, aquele que culmina num profundo conhecimento de si próprio, numa grande liberdade, espontaneidade, e numa verdadeira expressão daquilo que somos - este estado é muitas vezes chamado de nirvana, de moksha, de zen, etc. Assim como a semente pode ficar milhares de anos sem germinar, também o Homem pode nascer, crescer, e morrer, sem nunca amadurecer verdadeiramente. Só quando se estabelecem as condições necessárias (que segundo diversas filosofias orientais partem da meditação) pode o ser humano florescer. O ser humano nasce e vive na lama, na medida em que vive num estado de grande aprisionamento mental, de grande condicionamento (somos prisioneiros daquilo que nos foi transmitido culturalmente, pela nossa educação - tornamo-nos escravos dos nossos pensamentos). Vive na lama por viver num estado de ausência de harmonia interior, um estado constantemente inundado por pensamentos negativos, sofrimento, insatisfação, conflito (alternado com períodos de satisfação e prazer passageiros). Vive na lama porque não se expressa verdadeiramente: expressa muitas vezes aquilo que acha correcto expressar, aquilo que acha que não será rejeitado e censurado pelos outros, vivendo numa auto-repressão constante. Vive na lama porque vive na culpa, recriminando-se, mesmo que inconscientemente, por aquelas coisas que não exprimiu devido à repressão, mas guarda contínuamente dentro de si - não mostra o que é para poder se integrar melhor na sociedade, mas o que esconde continua dentro de si a envenenar o seu ser, até que tudo seja exteriorizado. Só quando se expressa livremente pode este ser crescer, mostrar as suas pétalas. E só se pode expressar livremente quando se deixa de reprimir e sentir culpado pelo que é. E só pode abandonar essa culpa e repressão quando compreende e relativiza a pressão social, as normas.

Só quando remove todos os obstáculos, que no fundo eram alimentados por si próprio, só nesta altura mostra todo o seu brilho, que irradia o mundo e contagia os outros seres que o rodeiam, partilhando com eles a sua liberdade e dando-lhes força para enfrentarem os seus medos e se tornarem livres.

Aquilo que nos é transmitido pela sociedade tem a sua utilidade, pois serve de base ao nosso crescimento. Esse conhecimento e essas normas resultam da experiência dos nossos antepassados. Resulta numa mundivisão mais ou menos homogeneizada. No entanto, o mundo segue uma constante evolução: o conhecimento é contínuamente aprimorado, e contínuamente adaptado a novas realidades (há, no entanto, normas que são mais resistentes à mudança). Sabendo isto, não nos devemos apegar demasiado ao que nos foi transmitido: a nossa educação é uma plataforma de lançamento para o nosso crescimento contínuo, do qual faz parte a capacidade de individualização, de quebrar a norma quando esta tem de ser quebrada. Se queremos nos completar como seres humanos, temos de abandonar aquilo que nos lançou na nossa busca - a educação, e descobrirmos a nossa verdade, aquilo que somos e que temos de exprimir. Temos de cortar o nosso cordão umbilical, abandonar o ninho, amadurecer. E só mediante essa libertação e essa descoberta podemos resolver os nossos problema interiores, atingindo esse tal equilíbrio que será a nossa dádiva para o mundo e para a evolução da consciência desse mundo. Há que criar essas condições necessárias para sair da lama e para florescer.

Curto memorando sobre meditação

O estado muitas vezes chamado de meditação é um estado de ausência de mente, no sentido de ausência de pensamento, e logo um estado desprovido de todo o tipo de condicionamentos com origem em conceitos, formulas, conhecimento, enfim... de tudo o que reside na nossa memória – o passado. Normalmente, o conhecimento que temos armazenado sob a forma de memórias surge, espontaneamente ou porque nos deparamos com algo que nos faz recordar, alterando a forma como vemos aquilo que está à nossa frente: vejo uma pessoa que pertence a um grupo que considero de violento, recordo a informação que tenho acerca desse tipo de pessoa, vejo-a duma determinada forma com base na experiência que tenho com pessoas "assim", e activo um padrão de comportamento adequado para lidar com esse tipo de pessoa. Desta forma o nosso pensamento e comportamento é sempre determinado pelo passado e pela experiência, e extremamente limitado na medida em que cria imagens de pessoas novas com base em informação extraída de outras pessoas. Isto acontece de forma a que a nossa mente possa conhecer e compreender o mundo à volta da forma mais económica em termos de recursos. Mas isto não que dizer que não haja outra forma.

No estado de meditação, a mente silencia-se, e com ela toda essa informação do passado. Agimos num estado de inocência, porque tudo à nossa volta é misterioso. Se não há memórias e estamos focados no presente, o conhecimento é colocado de parte, e vemos tudo para onde olhamos como novo. Parece difícil orientarmo-nos sem a nossa pré-programação, mas essa dificuldade de lidar com o desconhecido a todo o momento, proporciona o maior crescimento da inteligência, na sua maior profundidade. Adquirimos um tipo de inteligência que nos permite abordar cada situação como única, tendo uma percepção mais límpida, sem nenhum tipo de limitação originada pelo passado e pela experiência. Agimos assim com total liberdade, sem nenhum tipo de condicionamento do passado. E por isso mesmo a nossa mente acaba por ser mais perspicaz e mais criativa. Liberta-se dos bancos de memória e respectivo conhecimento, agindo assim de forma mais livre e mais concentrada no momento presente.

A meditação permite uma canalização total da nossa atenção para o momento presente, afastando-nos das dimensões psicológicas do passado e do futuro. Torna-nos seres menos automáticos e mais autónomos, com espírito verdadeiramente crítico e independente de factores externos. Aumenta a nossa performance como seres humanos, pois tornamo-nos mais seguros, concentrados, livres, criativos e genuínos, permitindo também uma experiência mais profunda do fenómeno da vida.